Pesquisas mostram impacto positivo da medida já adotada em outros países na contenção das mudanças do clima; primeiro projeto piloto no Brasil começa em novembro deste ano
O primeiro projeto piloto da semana de quatro dias de trabalho começa em novembro no Brasil. O modelo é fomentado pela 4 Day Week Global, entidade que incentiva os trabalhadores a discutirem o tema com suas empresas (e sem redução de salário). Se tiver essa conversa com seu empregador, além dos benefícios sociais, para a saúde e de produtividade, um bom argumento é o impacto positivo da medida para frear o aquecimento global, como aponta uma série de estudos.
Ainda que os efeitos das mudanças climáticas tendam a ser desiguais e maiores entre os mais pobres, como mostram os relatórios das Nações Unidas, patrões ou empregados não têm como escapar deles.
Em um mundo 1,1º C mais quente em relação aos níveis pré-industriais, um dia a menos de trabalho por semana significa menos deslocamentos, gasto de energia, combustíveis fósseis e potenciais mudanças de hábitos. Isso se traduz em níveis mais baixos de emissões de gases do efeito estufa, principalmente dióxido de carbono (CO2), causadores das mudanças climáticas.
Hilmar Júnior deixa de rodar 16 km no percurso entre a casa e o trabalho
Foto: Felipe Rau/Estadão
Essa é uma das conclusões de uma pesquisa da Universidade de Reading, na Inglaterra. Publicado em novembro de 2021, e realizado com 2 mil funcionários e 500 líderes empresariais, o estudo afirma que, se todas as empresas e organizações do Reino Unido passassem a adotar a semana de quatro dias, os deslocamentos para o trabalho diminuiriam em mais de mais de 1 bilhão de quilômetros por semana.
O estudo também aponta que essas empresas economizaram cerca de 2,2% do faturamento total (R$ 6,4 bilhões) ao reter talentos e aumentar a produtividade. Além disso, mais de dois terços das empresas dizem acreditar que uma semana de quatro dias será importante para o futuro da companhia e 75% dizem que a maior barreira para adotar o modelo é garantir a disponibilidade para seus clientes.
No mesmo ano, em maio, estudo da 4 Day Week Global e da Plataform London, uma ONG focada em justiça ambiental, apontou que a mudança para a jornada de quatro dias, sem perda de salário, tem potencial para diminuir a pegada de carbono do Reino Unido em 127 milhões de toneladas até 2025.
De acordo com o levantamento, isso representa redução de 21,3%, e é mais do que toda a pegada de carbono da Suíça. Também equivalente a retirar 27 milhões de carros das ruas - quase a totalidade da frota de veículos particulares do país.
O que essas pesquisas mostram no Reino Unido, Daniela Aguiar e Hilmar Júnior vivem em São Paulo, desde novembro, quando a empresa em que trabalham, a Vockan Consulting, reduziu a jornada de 15 funcionários da área de Suporte, o que representa 50% da equipe administrativa, para quatro dias por semana.
A companhia foi a primeira do Brasil a se afiliar à 4Day Week Global e passou a fazer parte de uma pesquisa da entidade com empresas de Portugal. Desde o início, ela segue o modelo proposto internacionalmente de escalonar o dia a mais de descanso às sextas-feiras e às segundas-feiras. Assim, o trabalhador tem sempre quatro dias de trabalho e três de folga seguidos sem que a empresa pare suas atividades um dia a mais.
Segundo o CEO, Fabrício Oliveira, o objetivo é estender o modelo a todos os cem empregados de forma escalonada. “Começamos a observar que a satisfação e a produtividade aumentaram, sem custo adicional.”
E o receio dos 75% dos empresários entrevistados pela pesquisa da da Universidade de Reading não se comprovou na experiência brasileira. “O feedback dos clientes também foi positivo”, diz Oliveira.
A cada dia que Daniela deixa de se deslocar de Santo André, onde mora, para a zona sul de São Paulo, na sede da empresa, ela deixa de rodar cerca de 60 quilômetros. Para Hilmar, isso representa 16 quilômetros a menos.
As menores emissões que resultam disso são medidas desde o início deste século. Uma pesquisa da Universidade de Massachusetts (EUA), de 2012, analisou as emissões de mais de duas dúzias de países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) entre 1970 e 2007. A constatação é que, se a jornada fosse reduzida em 10%, isso resultaria em emissões de gás carbônico 4,2% menores. Se a redução fosse de 25%, essa taxa cairia 10,5%.
Outro estudo - do Centro de Pesquisa Econômica e Política, think tank com sede em Washington - comparou as horas de trabalho e uso de energia entre uma série de nações e os Estados Unidos. Se o país igualasse suas jornadas à da União Europeia, assim como o período de férias, seu consumo de energia poderia ser reduzido em até 20%. Por outro lado, se o bloco europeu se adaptasse ao horário de trabalho americano (e desistisse de suas semanas de trabalho mais curtas e férias mais longas), a UE consumiria 25% a mais de energia.
Daniela Aguiar experimenta a rotina de quatro dias de trabalho desde o ano passado
Foto: Felipe Rau/Estadão
E isso não é conversa de quem quer apenas trabalhar menos. Países como a Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Irlanda, Noruega e Emirados Árabes, além do Reino Unido, já adotam jornadas menores ou mediram seus benefícios.
E, em novembro, as empresas daqui terão a oportunidade de testar o modelo em estudo pioneiro no País conduzido pela 4 Day Week Global, em parceria com a brasileira Reconnect Happiness at Work. Os resultados serão analisados pelo Boston College. As inscrições podem ser feitas no www.4dayweekbrazil.com.
“Em junho e julho, faremos sessões de informações para as empresas interessadas”, afirma Renata Rivetti, fundadora e diretora da Reconnect Happiness at Work. “Em setembro, começaremos a preparação das empresas para que comecemos o piloto em novembro, por seis meses.”
Os ganhos para a saúde e o bem-estar dos funcionários já são claros. Segundo pesquisa com os funcionários da Vockan Consulting, que já estão nesse modelo de trabalho, o aumento geral da satisfação – que engloba gestão do tempo, saúde física e mental, realização de tarefas pessoais, entre outras – foi de 54% (antes do projeto) para 70% (depois).
Já a percepção sobre a qualidade de vida passou de 57% a 86%. O índice sobre o nível de felicidade dos funcionários aumentou em 43% e o de produtividade, em 23%.
O que fazer com o tempo livre?
No início, quando o modelo foi implementado na empresa de Hilmar e Daniela, os funcionários passaram a usar a folga extra para atividades que não conseguiam em dias de trabalho. “Aproveitei para marcar todos os médicos, para levar meu filho também. E fazer coisas que precisamos, mas não encontramos tempo na semana”, afirma Hilmar.
Com mais tempo livre, funcionários relatam que passaram a ir mais a parques como o Ibirapuera, em São Paulo
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Mas será que uma folga a mais não envolverá maiores deslocamentos (em viagens, por exemplo) e outras atividades que geram CO2? A resposta parece estar, primeiro, em um fato concreto: se o salário não diminui nesse modelo, tampouco ele aumenta. Ou seja, você terá de viver e equilibrar seus gastos como o mesmo valor. Isso inclui gastos básicos com alimentação ou viagens de avião.
Mas há exemplos que mostram que as atividades em dias livres tendem a ser “mais limpas” do que nos dias de semana, quando as pessoas estão estressadas e afetadas pela falta de tempo. A rotina de trabalho pode se traduzir em maiores gastos, por exemplo, com alimentação fora de casa ou entregas à domicílio e, claro, mais emissões de CO2.
Até mesmo isso foi medido. Pesquisa feita com dados do governo na França em 2001, pouco tempo após a redução da jornada de trabalho de 39 horas para 35 horas, sem diminuição de salário, mostrou que 52% dos trabalhadores passaram a usar essas horas livres em companhia da família e filhos.
Do total, 35% aproveitaram para apenas descansar; 34% usaram o tempo para esportes; 18% para atividades culturais; 11% para trabalhos voluntários ou em organizações não governamentais. E apenas 3% e 2% para viajar ou consumir mais, respectivamente.
Após a fase inicial, o tempo livre de Hilmar e Daniela foi preenchido em companhia da família, maiores cuidados com a saúde e bem-estar e mais tempo em parques da cidade, diz a funcionária. “Não só isso: você diminui também a poluição emocional.”
Emissões do Brasil aumentaram
Em novembro de 2021, em Glasgow, durante a Cúpula do Clima, a COP-26, o governo federal se comprometeu a cortar 50% das emissões até 2030, mas avançou pouco no cumprimento dessa meta
À época, o Brasil registrou a maior alta nas emissões de gases de efeito estufa em 19 anos, segundo o Observatório do Clima. A elevação, de 12,2%, ocorreu em 2021, em relação ao ano anterior, e tem como principal causa o desmatamento.
Área de desmatamento identifica pela operação Cupurira, no Pará
Foto: Divulgação/Secretaria de Segurança do Pará
Naquele ano, o País despejou na atmosfera 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente - uma forma de mensurar todos os gases estufa em uma mesma medida. O último aumento dessa monta havia sido em 2003, quando os dados de desmate bateram o recorde histórico. As emissões de gases estufa subiram 20% em 2021, conforme o observatório, que reúne mais de 50 organizações da sociedade civil.
No ano anterior, mesmo com a pandemia, que desacelerou a economia do País, e na contramão do mundo, o Brasil teve alta de 9,5% nas emissões de gases estufa em relação ao ano anterior. A tendência mundial havia sido de queda de quase 7%. A causa do sinal trocado brasileiro: a alta nos desmatamentos da Amazônia e do Cerrado, enquanto em países desenvolvidos a redução na poluição esteve ligada a menores atividade industrial e demanda de geração de energia.
A fragilização no combate aos crimes ambientais durante a gestão Jair Bolsonaro (PL) fez o Brasil ser alvo de críticas de grupos econômicos, sociais e científicos interna externamente.
Impacto poderia ser maior no Brasil
As principais causas de emissões no País são as mudanças no uso da terra - que inclui o desmate e as queimadas-, seguida da agropecuária e do setor de energia. Este último emitiu 435 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2021, ante 387 milhões em 2020.
É nesse setor que a semana de quatro dias impacta. Ou seja, se o Brasil desmatasse menos, a medida teria peso maior para a redução das emissões. Segundo Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Investigação Espacial (Inpe), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, o modelo econômico que coloca o Brasil como maior fornecedor de alimentos do mundo representa um desafio.
Para Nelmara Arbex, líder de consultoria em ESG da KPMG, a semana de quatro dias de trabalho é uma tendência no mundo que chega ao Brasil movida principalmente por questões de saúde mental. Segundo ela, é preciso não confundir o home office com a jornada menor. “É uma tendência principalmente porque vivemos um momento em que a saúde mental está no topo da agenda ESG.”
Deslocamentos para o trabalho impulsionam emissões, dizem estudos
Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Quanto à dificuldade inicial das empresas em aderir, ela diz que esse é um processo natural que ocorreu da mesma forma em outros países, como a Holanda. ”É bom para a empresa, para os clientes e para os colaboradores. E no fim, bom para a sociedade, já que temos grandes desafios em saúde mental”, diz.
Ela cita pesquisa da consultoria McKinsey com 15 mil funcionários de 15 países, que mostra que 59% passaram ou estão passando por um desafio de saúde mental. O estudo aponta ainda que funcionários que enfrentam desafios na saúde mental têm risco quatro vezes maior de sair da empresa, e duas vezes maior de estar desengajado no trabalho. “Ou seja, os desafios da saúde mental estão impactando e custando muito para as organizações, além dos impactos na sociedade.”, afirma.
Quando o projeto-piloto começar no Brasil, Hilmar e Daniela já estarão vivendo a experiência há um ano. Hoje, eles já falam sobre suas percepções. “Empresas são feitas de pessoas. Se não investe nelas e no bem-estar, ela não acontece” afirma ela.